quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Força transparente



Apesar da queda nas taxas de homicídio, a violência policial nas grandes cidades continua a ser duramente criticada por especialistas. Em junho, Philip Alston, relator especial das Nações Unidas, condenou a elevada taxa de letalidade da polícia em São Paulo e no Rio de Janeiro. Segundo ele, as forças de segurança nos dois estados mataram 11 mil cidadãos entre 2003 e 2009. “As evidências mostram claramente que muitas dessas mortes foram execuções”, afirmou o representante da ONU.

Somente a polícia paulista foi responsável por 543 mortes no ano passado, número 57% superior ao de 2008. “É uma taxa de letalidade inadmis-sível”, avalia o advogado potiguar Luiz Gonzaga Dantas, ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo.

Por essa razão, Dantas pretende encaminhar um pedido ao Ministério Público estadual até o fim do mês: que a instituição publique um provimento obrigando os delegados a registrar as mortes cometidas por policiais como homicídios, em vez dos chamados autos de “resistência seguida de morte”. Também quer proibir os policiais de prestar socorro às suas vítimas.
“Essa é uma tarefa que compete aos serviços de emergência”, explica o ouvidor. “Na prática, esse suposto socorro tem sido usado como desculpa para descaracterizar a cena do crime e dificultar a perícia. O policial leva a vítima ao hospital sabendo de antemão que ela está morta.”

A seguir, os principais trechos da entrevista concedida a CartaCapital.

CartaCapital: Quais são as raízes do que o senhor chama de “cultura da violência policial”?

Luiz Gonzaga Dantas: A polícia paulista nasceu por volta de 1831, no Império. O presidente provincial da época, brigadeiro Tobias de Aguiar, criou uma força de segurança com cavalaria e infantaria. Ou seja, a polícia tem uma origem militar e nunca mudou essa estrutura. Essa força atuou, inclusive, em conflitos armados, como a Guerra do Paraguai e a Revolução Constitucionalista de 1932. Esse histórico mostra que, ao longo da história, a polícia se portou como uma força armada. Na maioria dos países não é assim. A polícia tem a função de proteger o cidadão, pacificar a sociedade.

CC: Foco na proteção, e não na repressão. É isso?
LGD: Claro. O cidadão não é inimigo da polícia. Na realidade, foi ele que delegou poder às forças de segurança. Só que esse poder tem um limite. Se essa instituição militarizada serviu ao Império e à República Velha, hoje a sociedade percebe ser necessária uma polícia que respeite os direitos do cidadão.

CC: A polícia está muito distante dessa postura?
LGD: Sim, até porque a sociedade não participou da sua criação. Tudo foi imposto. Ela recebeu uma polícia formatada do jeito que queriam alguns grupos que dominavam a política da época.

CC: O que explica tantas mortes provocadas pela polícia?
LGD: O nome que se dá a esses homicídios, em São Paulo e outros estados, é “resistência seguida de morte”. Começando pelo fim, essa expressão é equivocada. Ela parte do pressuposto de que, no confronto com criminosos, o policial teve de usar a força para se defender. Pairam dúvidas, porém, sobre o comportamento da polícia, porque as denúncias que chegam à Ouvidoria indicam que nem sempre há confronto, e, sim, execuções. Por isso propomos mudança no registro. Em vez de “resistência”, que os boletins de ocorrência registrem, obrigatoriamente, a morte como homicídio.

CC: O policial seria indiciado como um homicida?
LGD: Se ele matou sem necessidade, sim. Se ficar comprovado que agiu no estrito cumprimento do dever, em legítima defesa, o delegado e o promotor devem pedir o arquivamento do caso.

CC: Mas essas mortes não são investigadas atualmente?
LGD: Não diria isso. Só que a morte é registrada de uma forma que gera dúvidas sobre a investigação. Anotar uma morte causada por policial como “resistência” é partir da suposição de que ele agiu num confronto legal. Caso conste como homicídio, o delegado partirá do pressuposto de que há um assassinato para investigar.

CC: Uma forma de garantir investigação isenta.
LGD: Exato. E há outros fatores que devem ser levados em conta. O socorro às vítimas da polícia deve ser feito apenas pelos serviços de resgaste e emergência. O policial chama pelo rádio a ambulância mais próxima. E, imediatamente, isola a área para proteger a cena do crime, como manda a lei, para que os peritos e os investigadores possam realizar um trabalho bem-feito.

CC: Por que proibir o policial de prestar socorro?
LGD: Não são raras as denúncias de que os policiais executam cidadãos sem confronto nenhum, e depois levam os corpos sem vida para o hospital, de forma a dificultar o trabalho de perícia.

CC: A taxa de letalidade da polícia tem aumentado?
LGD: De 2008 para 2009, houve um aumento de 57%. E continua crescendo. Apenas no primeiro semestre deste ano, a polícia matou 274 indivíduos. No mesmo período de 2009, foram 259 mortes. Só a Rota matou 36 no primeiro semestre. No mesmo período de 2009, foram 21. Nesse caso, houve um aumento da letalidade de 71%. A polícia exorbita suas funções.

CC: Das mortes causadas pela polícia, qual é o porcentual de vítimas que são socorridas pelos próprios policiais?
LGD: Não temos esse levantamento, mas posso assegurar que, em mais de 70% dos casos, o policial presta socorro. O problema são as suspeitas de que boa parte dessas vítimas já estava morta. O hospital só recebe o cadáver. Se a vítima morreu no trajeto ou se já estava morta muito antes, é difícil dizer, porque a maioria dos crimes ocorre de madrugada, em áreas periféricas, as testemunhas se sentem intimidadas. Mas há casos flagrantes de que os policiais retiraram o corpo só para dificultar a perícia.

CC: O senhor pode dar um exemplo?
LGD: Vários. Um deles foi o assas-sinato do motoboy Eduardo Santos, em 9 de abril. A investigação aponta que ele morreu dentro do 9º Batalhão da PM, na zona sul, após ser espancado. Mas o corpo só foi “encontrado” algumas horas depois na rua, a duas quadras do quartel. Supostamente socorrido por uma viatura da PM, o motoboy chegou sem vida ao hospital. Só que os laudos apontam que estava morto muito tempo antes do horário em que os PMs dizem tê-lo socorrido, ainda com vida. Percebe o jogo?

CC: A Ouvidoria tem conhecimento de algum caso de policial condenado por descaracterizar a cena do crime?
LGD: Não. Pode até existir, mas nunca fiquei sabendo de um único caso de policial punido por isso. Os PMs se defendem ao dizer que, se não levarem as vítimas ao hospital, seriam acusados de omissão de socorro. Mas levar um cadáver ao hospital não é prestar socorro, é descaracterizar a cena do crime.

CC: Nesses casos, o desfecho quase sempre é o arquivamento.
LGD: Há um exemplo emblemático que prova isso. Em 2006, no revide da polícia paulista contra os ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC), houve 48 registros de “resistência seguida de morte”, envolvendo 79 vítimas, entre 12 e 21 de maio. Desses casos, 77% foram arquivados e 18% não foram concluídos. Apenas quatro PMs e um policial civil foram denunciados, ainda assim aguardam o julgamento de recursos.

CC: Esse é um retrato comum?
LGD: Sim. É por isso que propomos o registro como homicídio e que os casos tramitem diretamente para a Vara do Júri, em vez do que acontece hoje: o processo segue para o Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária (Dipo), para depois ser redistribuído. O erro está na origem. A Defensoria Pública, o Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito (Ilanud) e outras organizações defendem essa bandeira há muito tempo.

CC: Existe alguma discussão sobre a criação de órgãos de perícia autônomos, desvinculados da estrutura da polícia?
LGD: Sim, e não apenas a autonomia da perícia, mas também a das corregedorias. A ideia é de que ambos os órgãos tenham estrutura e carreira independentes. Outro dia, peguei o caso de um delegado que havia trabalhado na Corregedoria da Polícia Civil e foi transferido para uma delegacia, na qual o titular havia sido alvo de um processo movido por ele. Imagina a situação: o delegado estaria subordinado à pessoa que ele corrigiu. Poderia ser alvo de vingança. Com carreira própria, seria corregedor até se aposentar.

CC: Qual é o principal problema da perícia hoje?
LGD: Ela tem um número muito reduzido de peritos. Para uma população de 42 milhões de habitantes no estado de São Paulo, a perícia dispõe de 1.177 servidores. No mínimo, deveríamos dobrar este número. Temos informações de que cada perito na capital paulista atende até 12 casos por dia. É impossível dar conta de todo o trabalho se for feita a perícia como manda a lei.

CC: Como mudar a cultura da violência da PM?
LGD: Uma das medidas é a unificação das polícias, que deve perder o caráter militarizado. Também é preciso priorizar o combate à tortura e pagar salários melhores. Até para evitar os bicos. Os policiais morrem mais trabalhando como segurança nas horas de folga do que fardados. Em 2009, 16 policiais morreram em serviço. Fora do trabalho, foram 66. Quatro vezes mais.

CC: E quanto aos grupos de extermínio integrado por policiais?
LGD: Outra falha das corregedorias, que deixam a desejar na investigação. Nos casos de maior repercussão na mídia, a Justiça Militar pune até com mais severidade que a Justiça comum. Mas nem sempre é assim. No caso do coronel José Hermínio Rodrigues, assassinado por um grupo de extermínio integrado por PMs, a corregedoria passou dois anos e meio para analisar o processo. Enquanto a Polícia Civil descobriu, entre 15 e 20 dias, os autores do crime: policiais do 18º Batalhão da PM.