quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O mito da democracia racial frente a política de cotas

Cláudio César Dutra de Souza

Ao tomarmos como base os múltiplos discursos que vêm sendo proferidos nos últimos meses em relação à contrariedade da aplicação de ações afirmativas no Brasil, particularmente no que se refere à adoção de cotas para negros nas universidades, podemos concluir que nesse país o racismo não existe. A base epistemológica que sustenta essa idéia se encontra apoiada nos mais arraigados mitos aos quais nos servimos para não pensarmos em nós mesmos como artífices e mantenedores de um processo de exclusão histórica da população negra. Um dos mitos mais absurdos, que frequentemente vem à tona direta ou indiretamente, é o da democracia racial. A origem desse termo é atribuída ao sociólogo Gilberto Freyre, embora esse muito pouco tenha feito referências explícitas a uma “democracia racial” no conjunto de sua obra, segundo Levy Cruz, membro do Grupo de Trabalho “Gilberto Freyre e a Contemporaneidade”, do Núcleo de Estudos Freyrianos da Fundação Joaquim Nabuco. Para Cruz (2002), a conceituação (implícita) de democracia racial de Gilberto Freyre implicava na existência simultânea desses fatores em um regime democrático. Em poucas palavras, para Gilberto Freyre:

1. Democracia é conceito relativo;

2. Sociedades reconhecidamente democráticas “conciliam” democracia com desigualdade;

3. A situação vigente no Brasil é a maior aproximação à democracia racial existente em todo o mundo;

4. Essa democracia racial, no entanto, está ainda em formação e não é perfeita, pura. Existem preconceito e discriminação, existem desigualdades[1]

Mesmo não tendo falado explicitamente acerca do mito da democracia racial, Freire inspira com sua obra, certamente mais citada do que propriamente lida, um número crescente de argumentos contrários às políticas de ação afirmativa no sentido de desqualificá-las como inócuas ou injustas, ou até mesmo ilegais. A utilização errônea do mito da democracia racial tem como objetivo oculto o de mostrar que aqui no Brasil nós não temos práticas institucionais de discriminação dos negros que foram praticadas por anos nos Estados Unidos. Nesse país, as ações afirmativas nasceram na década de 1960, nos Estados Unidos, inspiradas pelo Presidente Kennedy e postas em prática no governo de Richard Nixon, como forma de promover a igualdade entre os negros e brancos norte-americanos. Os Estados Unidos promoveram a aplicação do sistema nas universidades e nas empresas privadas. As políticas de ações afirmativa, entre elas as cotas, fizeram a classe média negra americana dobrar nos 20 anos seguintes. Hoje, segundo a revista inglesa “The Economist”, as negras americanas com diploma universitário ganham em média salários maiores do que os das americanas brancas com o mesmo grau de instrução. As cotas são apenas uma das modalidades de ação afirmativa, talvez, a mais radical delas, já que termina por excluir o direito dos privilegiados para favorecer os excluídos.

Como o objetivo das cotas é corrigir desvantagens provocadas pela deficiência sócio-econômica e educacional dos negros, elas costumam ser praticadas durante um período de tempo determinado, ou seja, até que as distorções sejam corrigidas. Em algumas universidades americanas as cotas estão sendo progressivamente abandonadas pelo fato de já terem cumprido o seu papel de promover e qualificar os negros. No Brasil, no entanto, afirma-se que a nosso racismo jamais teve uma sustentação institucional, ou seja, uma política de Estado que discriminasse os negros e os brancos. A conclusão parcial dessa linha de raciocínio é que a política de cotas não nos caberia até mesmo porque o nosso problema seria social e não racial. No entanto, o argumento de que não se pode reproduzir o sistema de cotas norte americano pelo fato de não ter havido uma institucionalização do racismo no Brasil pressupõe um país ao qual haveria instituições fortes desde a sua fundação. Lentamente e a duras penas tentamos nas últimas décadas, no Brasil e na América Latina, nos fortalecermos nesse ponto. Uma constituição democrática nós a temos somente a partir de 1988 e mesmo assim uma constituição que é manipulada através de emendas que servem aos interesses dos diferentes governos que vêem nela um entrave às suas aspirações muito mais do que um documento norteador da cidadania. Basta ver como a constituição norte-americana sofreu pouquíssimas e justificadas alterações desde a sua promulgação. Seria espantoso se tivéssemos um racismo institucionalizado em um cenário político que se desenvolveu no mais absoluto desrespeito`as instituições desde as suas anti-democráticas, golpistas e oligárquicas origens.

Ainda em relação às comparações com os Estados Unidos, os detratores das políticas de cotas lançam a acusação de se estar introduzindo um conflito racial inexistente em nosso país. Novamente aqui vemos a repetição dos conceitos de democracia racial propagados no vazio de um entendimento leviano acerca da obra de Gilberto Freyre. Se a discussão sobre o conceito de raça não é prioritária então podemos esquecer o passado escravocrata brasileiro e a condição que foi imposta aos negros nos últimos séculos. Mesmo após a abolição da escravidão o negro sempre foi, via de regra, um ser considerado inferior, sendo tacitamente impedido de ocupar os melhores postos de trabalho reservados aos brancos instruídos. Nos anos que sucederam à promulgação da constituinte, muito se discutiu a respeito da discriminação do negro, quer seja no mercado de trabalho, quer seja nas Instituições de Ensino Superior da rede pública. [2]

Dados do instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) referentes ao ano de 2002, mostram que “enquanto o salário médio mensal dos homens e mulheres brancos era, respectivamente, de R$ 726 e R$ 572 por mês, o dos homens e mulheres negros era de R$ 337 e R$ 289. São negros 64% dos pobres e 69% dos indigentes do País. A taxa de analfabetismo é três vezes maior entre os negros. Os jovens brancos, aos 25 anos, têm, em média, 8,4 anos de estudos. Já os negros da mesma idade, têm a média de 6,1 anos.” Além disso, entre os brancos “que são 54% dos 170 milhões de brasileiros, 36% são pobres e 31% são indigentes. Já entre os negros, 64% estão na linha de pobreza e 69% são arrolados na linha de indigência”. Sem levar em conta que “o Brasil possui a maior população negra fora da África só inferior numericamente à população do mais populoso país africano, a Nigéria. Contudo, esses negros não atingem as posições de status elevado, “entre os 970 magistrados [ da justiça federal] brasileiros, a percentagem de negros é inferior a 10% [...] no Ministério Público do Trabalho, apenas 7 dos 465 procuradores são negros, [...] o Itamaraty conta com cerca de mil diplomatas dos quais menos de dez são negros. Do total de professores universitários no país, 98% são brancos.” [3]

Somente os motivos supracitados já seriam suficientes para trazermos o debate do conceito de raças no Brasil que possui uma nada democrática distribuição racial em termos econômicos. Mas não é isso que pensam os “Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais” que assinaram um documento em maio de 2008 e o entregaram ao Ministro Gilmar Mendes condenando a política de cotas raciais. Entre as assinaturas, nomes conhecidos como a da colunista da Revista Veja, Lya Luft, o cantor e compositor Caetano Veloso e o polêmico teatrólogo Gerald Thomas, além de professores universitários, sociólogos e afins. Trechos do texto afirmam categoricamente que “raças humanas não existem. A genética comprovou que as diferenças icônicas das chamadas `raças` humanas são características físicas superficiais, que dependem de parcela ínfima dos 25 mil genes estimados do genoma humano. A cor da pele, uma adaptação evolutiva aos níveis de radiação ultravioleta vigentes em diferentes áreas do mundo, é expressa em menos de 10 genes”[4]. Esse tipo de discurso procura, através da manipulação de dados científicos, desqualificar a implementação do sistema de cotas já na sua origem. No últimos meses fomos bombardeados com reportagens tendenciosas que, entre outras pérolas, colocam a ginasta Daiane dos Santos, por exemplo, como mais européia do que negra. Segundo o estudo do Laboratório Gene, de Pena, a atleta gaúcha tem 39,7% de ancestralidade africana, 40,8% européia e 19,6% ameríndia. O geneticista Sérgio Pena explica, no entanto, que os testes de ancestralidade materna e paterna revelam apenas o ancestral mais antigo de cada lado. Seguindo a linha desse raciocínio concluiríamos que somos parte de um mesmo tronco comum de hominídeos surgidos na áfrica a milhões de anos e que evoluiu até a nossa forma atual, logo seríamos todos negros, ao mesmo tempo em que não existiriam negros já que Daiane dos Santos é predominantemente européia.

É uma pena que Adolf Hitler não tivesse esses dados em mãos quando optou pela “solução final” para o povo judeu durante a segunda guerra mundial. Que alívio seria para Hutus e Tutsis africanos saberem dessas informações antes de darem início ao seu triste genocídio em Ruanda. Por fim, não teremos mais negros barrados em restaurantes e casas noturnas e também a exigência de foto no curriculum vitae será abolida – que alivio! Pelo fato de a ciência afirmar a inexistência de raças, cidadãos árabes, indianos e latinos deixarão de ser suspeitos em potencial em todos os guichês de imigração espalhados pelo mundo. E no Brasil assistiremos o espetáculo da integração do negro em uma sociedade que pensávamos ser dominadas pelos brancos! Quem sabe não descobriremos que a apresentadora Xuxa é 54,9% africana? isso serviria para acabar com o imenso complexo de inferioridade que as crianças negras tiveram nas décadas de 1980 e 1990 com a apoteose do modelo de beleza caucasiano impetrado pela Rede Globo de Televisão.

Os Cento e treze cidadãos anti-racistas prosseguem no elogio da hipocrisia racial brasileira em mais um trecho de seu manifesto: “por certo existe preconceito racial e racismo no Brasil, mas o Brasil não é uma nação racista. Depois da Abolição, no lugar da regra da `gota de sangue única`, a nação brasileira elaborou uma identidade amparada na idéia anti-racista de mestiçagem e produziu leis que criminalizam o racismo. Há sete décadas, a República não conhece movimentos racistas organizados ou expressões significativas de ódio racial. O preconceito de raça, acuado, refugiou-se em expressões oblíquas envergonhadas, temendo assomar à superfície. A condição subterrânea do preconceito é um atestado de que há algo de muito positivo na identidade nacional brasileira, não uma prova de nosso fracasso histórico”.[5] É muito triste que os nossos 113 intelectuais sustentem esse raciocínio simplista ao destacar que um discurso “subterrâneo” seria preferível a um discurso manifesto. No segundo caso ao menos saberíamos identificar o problema e combatê-lo com mais eficácia. Porém, o racismo disfarçado “à brasileira” não deixa de ser tão triste e nefasto como o americano.

As teses da democracia racial começaram a ser combatidas na década de 1950 do século passado por estudiosos ligados a Florestan Fernandes.Ainda assim, apenas a partir de pesquisas da década de 1980, realizadas por instituições tanto oficiais quanto não-governamentais, o governo brasileiro se viu obrigado a reconhecer a existência do racismo na sociedade.[6]

O discurso da mestiçagem brasileira é acompanhado de um forte viés ideológico. Como os negros constituíam, desde o período colonial, a maioria da população, e os bancos uma minoria, fabricou-se uma categoria intermediária, o mulato, que servia como válvula de escape para a tensão racial. Essa saída teria sido providencial: um ser híbrido, que nunca se define se é negro ou branco. O discurso ideológico da mestiçagem popularizou-se, de modo que a população brasileira – ao contrário da norte-americana, por exemplo – geralmente não se assume racialmente.[7].

Se há décadas a república não conhece movimentos racistas organizados é somente porque os negros “sempre conheceram o seu lugar”. Sempre estivemos próximos, é claro, os brancos no comando e os negros obedecendo ou escapando para a via da marginalidade e do crime. Como diria Caetano Veloso muitos anos antes de juntar a sua assinatura aos manifestantes anti-cotas “o macho adulto branco sempre no comando”[8], o que o leva a perceber em outra canção que “quem descobriu o Brasil, foi o negro que viu, a crueldade bem de frente e ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente”[9]. Um movimento racista organizado (a nossa maneira, bem entendido) nasce nas universidades e nas manifestações de estudantes contrários às cotas. Esse movimento se utiliza do Orkut entre outras ferramentas para propagar mensagens “subterraneamente” racistas no manifesto de sua inconcordância com o sistema de cotas. Os discursos não variam muito e vão da “meritocracia” à “inconstitucionalidade” da medida.

Recorre-se ao conceito de meritocracia para negar a validade da política de cotas. Ora, desde quando a meritocracia reina neste país? Se respondermos positivamente a essa pergunta, seremos forçosamente conduzidos a uma conclusão evidente de que pobres e negros estão na situação vulnerável em que se encontram por sua própria culpa, e que nossas elites trabalharam duro para chegar onde estão – no topo da pirâmide de um país com um dos piores níveis de distribuição de renda do mundo.[10]

Quanto à inconstitucionalidade das cotas, esse é mais um exemplo do racismo “subterrâneo” que aos poucos mostra a sua cara. Por que esses jovens que buscam na justiça os seus direitos mediante a argumentação de que somos todos iguais perante a lei não juntam seus esforços no sentido de promover algumas correções urgentes que de tão repetidas tornaram-se naturalizadas, tais como uma cela especial para os portadores de um diploma superior e o foro privilegiado para os membros mais proeminentes da nossa aristocracia? Em artigo de Alexandre Magno Fernandes Moreira[11], este coloca que o foro privilegiado, também chamado de foro por prerrogativa de função, não tem nenhuma justificativa ética. Ao contrário, desrespeita frontalmente o princípio republicano da igualdade, segundo o qual a lei deve ser aplicada da mesma maneira a todas as pessoas que se encontrem na situação prevista por ela, independentemente da posição social que ocupem (…) do presidente da república ao faxineiro, todos devem ser tratados igualmente, sob pena de não se ter uma democracia, mas uma aristocracia, em que uma elite governante se coloca acima da lei. Se as cotas ferem o princípio da igualdade, tal como definido no art. 5º da Constituição Federal, pelo qual “todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza”, na visão dos ministros do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Mello e Joaquim Barbosa Gomes, o princípio inconstitucional da igualdade, contido no art. 5º, refere-se à igualdade formal de todos os cidadãos perante a lei. A igualdade de fato é tão-somente um alvo a ser atingido, devendo ser promovido, garantindo a igualdade de oportunidades como manda o art. 3º da mesma Constituição. As políticas públicas de afirmação de direitos são, portanto, constitucionais e absolutamente necessárias.[12]

Em outro momento de seu manifesto, os 113 cidadãos afirmam que “os concursos vestibulares, pelos quais se dá o ingresso no ensino superior de qualidade `segundo a capacidade de cada um`, não são promotores de desigualdades, mas se realizam no terreno semeado por desigualdades sociais prévias.” Pensamos que essas desigualdades sociais prévias seriam, de certa forma, um reconhecimento implícito da vantagem que brancos de classe média para cima teriam em relação aos negros e brancos (“Ou quase pretos ou quase brancos quase pretos de tão pobres.E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos”)[13] de classe inferior e sem acesso aos múltipos mecanismos que dão acesso ao ensino superior, tais como um ensino fundamental e médio que, longe de promover o pensamento crítico se apresenta cada vez mais como um “cursão” pré-vestibular e os outros tantos cursinhos que proliferam na nossa sociedade que se especializam no ensino de “macetes” para o sucesso no concurso. Esses “macetes” levam um aluno a conseguir responder uma questão sobre Machado de Assis na prova de literatura sem jamais ter lido uma linha do velho mestre. Obviamente há muitas, muitas exceções, mas o fato é que nem sempre uma aprovação em um concurso vestibular se faz de forma tão meritória como se é apregoado.

Uma das vozes que se destacam na militância anti-cotas é o da procuradora geral do distrito federal e assinante do manifesto dos 113 cidadãos, Roberta Fragoso Kaufmann. Em entrevista a revista Istoé [14] ela afirma que o cantor Neguinho da Beija Flor possui 70% de DNA europeu e logo deveria ser conhecido como “branquinho da beija flor (!). Ela ainda afima que “se fizermos uma análise de ascendência para saber quem é negro, quem de nós não é negro?”, comentando sobre o bi-racialismo americanos em contraste ao nosso suposto caleidoscópio de cores brasileiro. A louríssima procuradora vai mais além ao afirmar que “nasceu no Recife”, logo deve ter sangue negro e que sua filha se chamará Gabriela em homenagem a personagem de Jorge Amado. Gabriela “cravo e canela”, imortalizada pela atriz Sonia Braga, inspira as mais belas fantasias eróticas no imaginário nacional, as mesmas fantasias que tiveram os colonizadores com as índias, as negras e negros que eram considerados como possuidores e uma sexualidade “bruta” e que foram sistematicamente seviciados pelo colonizador, seja de forma brutal, ou com seduções ardilosas ao pé do ouvido. Como resultado, uma imensa produção de “bastardos” que se multiplicavam entre si provocando o espanto, a vergonha e a repulsa daqueles que sonhavam com um Brasil mais “branco”. Desde o início do século XX, as discussões sobre eugenia racial e o branqueamento da população foram seriamente consideradas como um meio legítimo de “melhorar” a nossa população. O historiador Porto Riquenho Jerry Dávila nos mostra que a miscigenação era considerada nefasta pelos intelectuais da época, principalmente médicos e educadores. A união de indivíduos de etnias diferentes produzia incapazes, degenerados, indolentes, ou mesmo com tendências para a criminalidade. Essa herança racial entrava em conflito ao se miscigenar, produzindo indivíduos instáveis e incapacitados para a vida civilizada, que exigia disciplina, trabalho e ordem.[15]. Desde muito cedo nesse país soube-se quem era “negro” ou quem era “branco”, entendendo a palavra “negro” em um sentido mais amplo, ou seja, a negação do branco. Nesse ponto não seríamos tão diferentes dos Estados Unidos visto que, de forma disfarçada, o bi-racialismo impera em nosso território a despeito de delírios de brancos que se consideram geneticamente negros e vice e versa.

Prosseguindo com a sua linha de raciocínio, Roberta Kaufamnn e seus 112 companheiros de manifesto afirmam que “a pobreza no Brasil tem todas as cores”. Contudo, segundo o relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), de 2005, apesar do número de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza ter recuado cinco milhões de 1992 a 2001, entre os negros, houve um aumento de 500.000, ou seja, para cada 11 não-negros que escaparam da pobreza, 1 negro ficou pobre. O relatório do PNUD revela que, independente da região do Brasil e de seu grau de pobreza, os negros são sempre os mais prejudicados. No Nordeste, onde 57,4% da população é pobre, o percentual de negros que vivem abaixo da linha da pobreza (renda per capita inferior a R$ 75,50, em valores de 2000) é de 61,9%, enquanto que o de brancos é de 46,9%. Entre os total de nordestinos pobres, mais de três quartos (75,6%) são negros. Na região com a menor proporção de pobres — o Sudeste (21,5%) — a situação é a mesma: quase um terço (32,1%) dos negros estão abaixo da linha da pobreza, condição de apenas 15,6% dos brancos. Entre o total de pobres, 53,5% são negros e 46% brancos. A única região em que os negros não são maioria entre os pobres é o Sul, onde 10,5% da população vive abaixo da linha da pobreza. Do total de sulistas pobres, 73,6% são brancos e 25,9% negros. Mas isso não significa que eles sejam menos prejudicados: de todos os negros que vivem no Sul, 38,9% são pobres, enquanto que entre os brancos a taxa fica em 20,4%. No Norte, os negros são 78,8% dos pobres, e os brancos, 21%.[16]

A utilização de tais dados só reforça algo que é perfeitamente visível a olho nu. Pensamentos e teorias tendenciosas objetivam minimizar o fato de que a brutal desigualdade de renda persistente no Brasil se torna ainda mais penosa para os negros. E quem são os negros? Para quem parece jamais ter visto um, aconselhamos a não entrar em qualquer universidade pública ou privada e muito menos em qualquer restaurante ou casa noturna em qualquer zona de classe média das grandes cidades, porque l’a eles não serao encontrados. Contudo, eles podem ser facilmente vistos nos presídios, nas periferias e nas favelas. Estão nos grande magazines que vendem mercadorias de péssima qualidade em 48x no “carnê” com juros exorbitantes. Também em pólos turísticos tais como a Bahia de Caetano Veloso onde os mesmos manifestam a sua cultura ancestral para os brancos se deleitarem com nossas raízes, protegidos por cordões de isolamento que segregam os negros que não podem dançar e senão adquirir os caríssimos “abadás” do carnaval baiano. Estão em Porto Seguro, igualmente agradando os brancos e, por vezes, servindo de fantasias sexuais às brancos e brancas ávidas por aventuras. Podem estar cozinhando para os brancos ou cuidando dos seus carros entre outros tantos exemplos.

A persistência desse lugar possível e aceito de inserção dos negros em nossa exemplar democracia racial alimenta a estrutura racista e os fazem invisíveis para nós. O grande problema da discussão das políticas de cotas nas universidades é a possibilidade de inversão dessa lógica perversa em que negros historicamente vistos como subservientes aos brancos possam vir a sentar-se ao seu lado, nos mesmos bancos universitários. `E a possibilidade de negros serem juízes, médicos, engenheiros, psicólogos, administradores, cineastas e diplomatas que dispara o gatilho do racismo, cada vez menos disfarçado e pronto para emergir da sua condição “subterrânea” para barrar qualquer das mínimas tentativas que o país vem empreendendo no sentido de reconhecer a sua existência e corrigir as suas distorções.

Contamos desde 1951, com a lei 1390/51 – A Lei Afonso Arinos, que afirma que: “constitui infração penal (contravenção penal) punida nos termos dessa lei, a recusa por estabelecimento comercial ou de ensino, de qualquer natureza, de hospedar, servir, atender ou receber clientes, comprador ou não, o preconceito de raça ou de cor”. Em 1985, 34 anos depois da Lei Afonso Arinos, foi promulgada a lei nº 7437/85. Essa lei continua a considerar os comportamentos preconceituosos, meramente contravenção penal. Pela lei, a contravenção foi estendida para preconceito de: raça, cor, sexo, estado civil. Finalmente, a Constituição de 1988, em seu art. 5º – inc. XLII, passou a considerar a prática do racismo, especificamente, como crime inafiançável e imprescritível. e acordo com DOMINGUES (2005)[17] O Brasil já dispõe de diversas leis fundadas no princípio das ações afirmativas. Tais leis reconhecem o direito à diferença de tratamento legal para grupos que sofreram (e sofrem) discriminação negativa, sendo desfavorecidos na sociedade brasileira. As leis listadas abaixo são apenas alguns exemplos:

• O art. 67 das Disposições Transitórias da Constituição Federal de 1988 estabelece que: “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”.

• A lei nº 8.112/90 prescreve, no art. 5o, § 2o, cotas de até 20% para os portadores de deficiências no serviço público civil da União.

• A lei nº 8.213/91 fixou, em seu art. 93, cotas para os portadores de deficiência no setor privado.

• A lei nº 8.666/93 preceitua, no art. 24, inc. XX, a inexigibilidade de licitação para contratação de associações filantrópicas de portadores de deficiência.

• A lei nº 9.504/97 preconiza, em seu art. 10, § 2o, cotas para mulheres nas candidaturas partidárias

Quando da aprovação de tais leis não assistimos nenhuma manifestação da sociedade civil organizada. Nenhum intelectual se pronunciou a não ser para aplaudir tais medidas e nenhuma suspeita de inconstitucionalidade foi lançada ao debate na mídia tal como presenciamos nesse momento em relação às cotas universitárias para negros. Mulheres, índios e deficientes são merecedores de legislação especial que os proteja e os incentive a uma maior participação social, mas os negros, estes não podem e não devem ter qualquer forma de amparo legal a fim de minimizar os efeitos perversos de séculos de exploração e preconceito.

A existência de racismo no Brasil é uma realidade que se apresenta perante os nossos olhos desde o início do debate sobre a introdução das ações afirmativas e, mais especificamente, das políticas de cotas em nosso país. Esse racismo se encontra de tal forma colado em nossa subjetividade que jamais é mencionado e os 113 cidadãos que assinaram o manifesto anti-cotas tomaram o cuidado de acrescentar “não racistas” em seu documento, talvez porque já esperassem manifestações dessa ordem. Se pensamos não existir racismo e discriminação em relação a “pessoas de cor” é somente porque esse processo encontra-se perigosamente naturalizado em nós mesmos. Nos livros escolares que durante muito tempo apresentaram mulheres e negros em posições subalternas, na literatura e na televisão, nas piadas racistas que as crianças aprendem desde cedo no colégio. Quando veio ao Brasil em agosto de 1960, o filósofo Jean Paul Sartre percebeu com perplexidade a ausência de negros em suas concorridas palestras. “Onde estão os negros?” perguntou ele a certa altura, para o constrangimento dos universitários ali presentes. Alguém responderia a Sartre que não havia negros no recinto tão somente por causa da falta de mérito dos mesmos em conquistar um lugar no espaço universitário… fazer o que se eles não querem estudar?

Nesse período, o dramaturgo Nelson Rodrigues também se perguntava: “Onde estão os negros do Itamaraty? Procurei em vão um negro de casaca ou uma negra de vestido de baile. O Itamaraty é uma paisagem sem negros.” Nelson também publicou em uma de suas confissões, no jornal Última Hora, em 26 de agosto de 1957, a seguinte observação acerca do teatrólogo e futuro senador da república, Abdias do nascimento: “O que eu admiro em Abdias do Nascimento é a sua irredutível consciência racial. Por outras palavras: trata-se um negro que se apresenta como tal, que não se envergonha de sê-lo e que esfrega a cor na cara de todo o mundo. (…) Eu já imagino o que vão dizer três ou quatro críticos da nova geração: que o problema não existe no Brasil. Mas existe. E só a obtusidade pétrea ou a má-fé cínica poderão negá-lo. Não caçamos pretos, no meio da rua, a pauladas, como nos Estados Unidos. Mas fazemos o que talvez seja pior. A vida do preto brasileiro é toda tecida de humilhações. Nós o tratamos com uma cordialidade que é o disfarce pusilânime de um desprezo que fermenta em nós, dia e noite. Acho o branco brasileiro um dos mais racistas do mundo”.

As ações afirmativas em geral, e as cotas em particular, não se constituem na panacéia universal que resolverá todos os males da nação, mas são certamente um golpe certeiro no desvelamento de nossas hipocrisias no que tange ao fim definitivo do mito da democracia racial ainda vigente em nosso país.


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[1] http://www.fundaj.gov.br/tpd/128.html#fn2

[2] MELO, Osias T. Fernandes de in: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5301&p=2. Acesso em 03 de junho de 2008

[3] CUNHA, Tereza; CAZARRÉ. Lourenço. A idéia é facilitar o ingresso de estudantes afro-descendentes… UNB revista. a. 4. n.º 2. fev de 2003. disponível em , citado por MELO, Osias T. Fernandes de in: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5301&p=2

[4] Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais in: http://www.ciencialat.com/carta113.pdf

[5] Ibid

[6] Relatório de Desenvolvimento Humano – Brasil 2005. Racismo, Pobreza e Violência. In: www.pnud.org.br

[7] DOMINGUES, Petrônio. Ações afirmativas para negros no Brasil. O início de uma reparação histórica. Revista Brasileira de Educação, maio, jun, jul, ago de 2005. N 29

[8] “O Estrangeiro”, 1989

[9] “Milagres do Povo”, 1985

[10] Souza & Ferabolli: “Por que ainda somos diferentes” Le Monde Diplomatique Brasil in: http://diplo.uol.com.br/2007-11,a2021

[11] Poder Invisível – foro privilegiado é um meio de favorecer a impunidade. in: http://conjur.estadao.com.br/static/text/54970,1. Acesso em 05 de junho de 2008

[12] Ibid

[13] “Haiti” – Gilberto Gil & Caetano Veloso, 1993.

[14] Revista Istoé n 2012. 28 de maio de 2008

[15] DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: polític social e racial no Brasil -1917 – 1945. São Paulo, ed Unesp, 2005. 400p.

[16] Relatório de Desenvolvimento Humano – Brasil 2005. Racismo, Pobreza e Violência. In: www.pnud.org.br

[17] Ibid

Fonte: http://claudioesilvia.wordpress.com/